Depois das primeiras aulas desse novo semestre, senti uma vontade calma de escrever. Não para explicar o que fiz em sala, nem para registrar metodologias — mas para guardar, em palavras, o que foi ficando suspenso no ar. Há experiências que pedem para ser partilhadas, não por necessidade de ensinar, mas por gratidão em ter vivido.
O semestre começou no Conservatório Municipal de Música Dr. José Figueiredo com um silêncio bom.
Desses que parecem abrir espaço dentro da gente — como se a alma, por um instante, pudesse se espreguiçar em paz. Talvez fosse só a falta do burburinho comum dos corredores, talvez fosse o nervosismo dos novatos. Ou talvez fosse um daqueles silêncios cheios de significado que só se revelam com o tempo. Seja como for, havia alguma coisa no ar. Uma atenção suspensa, como uma respiração contida antes do primeiro som.
É bonito observar os olhos de quem chega. Eles ainda não sabem, mas estão prestes a atravessar um mundo que não se percorre com os pés — e sim com o ouvido. Um mundo que começa quando o barulho se cala e a escuta se oferece.
É estranho pensar nisso: que escutar, de verdade, dá trabalho. Exige disposição. O ouvido, esse velho conhecido que carregamos desde sempre, parece precisar de tempo para aprender a funcionar direito. Talvez por estar sempre tão exposto ao ruído, tão acostumado a se defender, que acaba esquecendo como se abre de fato.
Naquele primeiro encontro, falei em voz baixa. Não por timidez, mas por intenção. Há coisas que só se ouvem quando o volume do mundo diminui. E talvez seja aí que começa a música: não na nota em si, mas no espaço que se faz ao redor dela. No gesto que antecede. No silêncio que prepara.
Chamei de “ouvido pensante” — e reparei nos rostos curiosos. Gosto dessa expressão. Ela me parece justa. Porque não é só escutar que nos transforma, é refletir sobre o que se escuta. É dar nome às texturas invisíveis do som. É perceber que aquilo que vibra no ar também vibra por dentro.
Alguns alunos sorriam com a novidade. Outros franziam o cenho, tentando entender. Mas o que realmente me tocou foi o brilho do espanto. Aquela luz discreta que aparece quando o mundo começa a parecer maior do que se imaginava.
Falamos de som. Não como matéria técnica, mas como presença viva. Falei da importância do silêncio. Do quanto ele não é ausência, mas espera. E do quanto o ouvido precisa ser limpo — não com água ou algodão, mas com presença.
Porque há ruídos que não vêm de fora.
Há barulhos dentro da gente. Barulhos de medo, de urgência, de ansiedade. E é preciso aprender a silenciá-los também, para que o som verdadeiro encontre lugar.
Um aluno — ainda sem saber direito o nome das notas — me disse algo que guardei com carinho:
> “Parece que quando a gente escuta de verdade, o som fica mais bonito.”
E eu concordei. Não porque o som mude, mas porque a escuta muda tudo.
Voltei para casa naquele dia com uma serenidade diferente. Com a sensação de que, mesmo sem partituras ou grandes feitos, algo havia começado. E não falo de um semestre letivo, nem de um conteúdo programático. Falo de um processo delicado: o de formar ouvidos que pensam. Escutas que sentem. Gente que silencia não por omissão, mas por reverência.
A música, no fim, não está só nas notas. Está no jeito como olhamos o mundo depois de ouvi-lo com cuidado. Está no gesto que espera, na pausa que acolhe, na palavra dita na hora exata. Está na forma como passamos a habitar o cotidiano — menos como quem atravessa um ruído, mais como quem participa de uma harmonia.
E talvez esse seja um dos maiores aprendizados que a música oferece, mesmo quando ninguém a percebe como tal: a capacidade de afinar a vida. De escutar com delicadeza. De perceber que há uma melodia oculta no fundo das coisas simples.
Essa semana, o som começou. Mas o que me encantou foi o silêncio que o antecedeu.
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