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Colunas
10/04/2025 - 09h46
O SILÊNCIO DAS PALAVRAS
Confira a coluna do Emerson Miranda na última edição da Gazeta: 4.286

É tarde na noite quando me sento diante do computador. O cursor pisca como quem bate à porta da inspiração, mas do outro lado não há ninguém. Ou melhor, há eu — mas sem mim. A correria dos dias me rouba o momento, o olhar, o tempo de colher o mundo com calma. Resta-me este espaço em branco, tão vazio e tão cheio do que não consigo dizer. 

Começo, então, a rabiscar palavras aleatórias, como quem semeia letras ao acaso, esperando que alguma floresça. Penso em desistir, fechar o editor e entregar o espaço vazio, como um pedido de desculpas à página. Mas há algo de sagrado em cumprir com a palavra dada — ainda que a palavra se esconda. 

E é nesse hiato que ouço vozes. 

Sim, vozes — não essas que assustam, mas aquelas que acolhem. Vêm de longe, ou talvez de dentro. O primeiro a se sentar comigo é Fernando Pessoa, com seus tantos heterônimos. “Afinal, o poeta é um fingidor”, ele me diz. “Finge tão completamente que chega a fingir que é dor a dor que deveras sente.” Sorrio, cansado, e quero dizer-lhe que, hoje, nem fingir eu consigo. Mas ele apenas acena com o chapéu e se dissipa. 

Logo depois, é Clarice quem chega, trazendo seus silêncios barulhentos. “Escrevo como quem lambe uma ferida”, confessa, como se me lesse. “É do fundo do não-saber que eu escrevo, e é para o não-saber que eu escrevo.” Ela segura minha mão, e por um instante, não preciso entender nada — só sentir. 

Machado vem em seguida, elegante e irônico. Olha a tela em branco e diz: “O nada é mais cheio de possibilidades do que qualquer coisa.” Tenho vontade de rir. Talvez ele tenha razão. Talvez seja o próprio vazio o berço das ideias. 

Converso com Cecília Meireles, e ela me confidencia: “Aprendi com as primaveras a me deixar cortar para poder voltar sempre inteira.” E então compreendo — talvez este instante partido, sem inspiração, seja só a tesoura do tempo me aparando para renascer. 

É quando percebo: a falta de inspiração é, em si, uma forma de presença. É o convite da vida para olhar de novo, com olhos descansados e alma descalça. Não é ausência — é repouso. É o sussurro do mundo dizendo: "Antes de escrever sobre a vida, viva." 

Quantas vezes temos deixado que a pressa nos tire o poético da rotina? Corremos tanto que o céu muda de cor sem que notemos, que uma criança sorri sem que vejamos, que uma lágrima nossa escorre sem que saibamos por quê. A pressa é uma forma de cegueira — uma cegueira socialmente aceita, e por isso tão perigosa. 

Nietzsche, de canto, murmura: “A pressa é universal porque todos fogem de si mesmos.” E me calo. 

Percebo, então, que a crônica nasce. Não de uma ideia pronta, mas da honestidade do instante. Das vozes que me visitam, dos silêncios que me abraçam, da falta que vira matéria-prima. 

E assim, inspirado pelo próprio desalento, escrevo. Porque às vezes não é o tema que me move, mas a coragem de aceitar o vazio. A folha em branco não é o fim — é o começo de tudo o que ainda pode ser dito. 

Fica aqui, então, um lembrete — talvez mais pra mim do que pra você, leitor: que não deixemos a correria da semana nos roubar o sagrado da contemplação. Que tenhamos sempre um tempo para parar, ouvir as vozes dos que vieram antes, e sobretudo, ouvir a nossa. Porque é no intervalo do caos que, por vezes, a alma respira. 

E é dessa respiração que nasce o que realmente importa. 



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