O domingo chegava ao fim quando me sentei à frente da casa de minha mãe. O céu tingia de dourado as bordas das nuvens, e a Serra do Cruzeiro, ali ao longe, permanecia firme — como uma sentinela do tempo. No alto da serra, a imagem do Cristo de braços abertos parecia flutuar na luz morna do entardecer. Havia algo de eterno naquele instante. Um silêncio profundo me tomou — não o silêncio vazio, mas aquele que fala, que nos chama para dentro.
Era o primeiro dia da Semana Santa.
Não sei explicar bem por que, mas naquele momento fui tomado por uma lembrança antiga. Lembrei da velha Bíblia da minha avó, guardada há anos no quarto de dentro, com as folhas amareladas e anotações feitas a lápis em margens gastas. Entrei. O cheiro da casa me trouxe memórias de infância. Abri a gaveta e lá estava ela — a Bíblia de capa azul, com páginas de seda e letras miúdas. Sentei-me novamente, agora sob a luz amarelada da sala, e comecei a buscar os relatos da Paixão de Cristo.
Era como ler uma história que eu já conhecia, mas que de repente se revelou nova, como se a dor, o amor e o silêncio de cada página me atravessassem pela primeira vez.
“Hosana ao Filho de Davi!” — foi assim que tudo começou. Aclamado pelo povo, Jesus entra em Jerusalém montado num jumentinho, como um rei de paz. A multidão o recebe com ramos e mantos estendidos no chão (Mt 21,9). Mas o que começa com festa se desdobra, dia após dia, em tensão e conflito. Jesus ensina, cura, desafia as estruturas. Fala de um Reino que não cabe em palácios, mas floresce nos corações.
A cada virar de página, sentia a aproximação da cruz.
Na quinta-feira, a Ceia. O pão partido, o vinho compartilhado, o gesto humilde de lavar os pés. A traição anunciada e o coração do Mestre transbordando amor. “Fazei isto em memória de mim” (Lc 22,19) — não como ritual apenas, mas como um modo de viver: partir-se, oferecer-se, servir.
E então vem a noite. O horto. A solidão. A angústia de quem carrega o destino do mundo nos ombros. “Pai, se queres, afasta de mim este cálice; contudo, não seja feita a minha vontade, mas a tua” (Lc 22,42). Uma oração que mais parece um grito contido. Jesus é preso, julgado, torturado, humilhado. O povo que o aclamou, agora grita: “Crucifica-o!”.
A sexta-feira amanhece cinza. O madeiro, o sangue, o abandono. “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?” (Mt 27,46). Naquele clamor, Jesus não só sofre — ele abraça a dor de toda a humanidade. A cruz torna-se o altar do amor absoluto.
Mas foi ao chegar ao relato do sábado que algo dentro de mim se revirou. A Bíblia dizia pouco sobre aquele dia. Apenas que era o dia de repouso. Que o corpo de Jesus fora colocado num túmulo escavado na rocha, e que uma grande pedra fora colocada à entrada.
O sábado... o dia do silêncio.
Foi aí que parei. Fechei os olhos e imaginei. O Cristo morto. Os discípulos escondidos. Maria, com o colo vazio. A esperança em suspenso. Deus em silêncio.
Que mistério é esse?
Na tradição da Igreja, esse dia é chamado de “Sábado Santo”. Liturgicamente, é um dia sem missa, sem festa, sem canto. Tudo espera. É o tempo da ausência. Mas os santos antigos, os Padres da Igreja, falam de algo grandioso: dizem que enquanto a terra chorava, Cristo descia à mansão dos mortos, para buscar os justos que esperavam desde o princípio. O silêncio do sábado não era vazio — era uma gestação de luz, uma espera prenhe de promessa.
Lembrei do povo que, mesmo antes da Vigília Pascal, já chama esse dia de “Sábado de Aleluia”. E compreendi: o coração popular, mesmo sem saber toda a teologia, intui que a pedra não ficará para sempre sobre o túmulo. Intui que o silêncio de Deus não é descaso, mas preparo. E então canta, dança, acende fogueiras, malha o Judas, expulsa o mal com risos e esperanças.
Na noite desse mesmo sábado, na Vigília Pascal, a Igreja acende o fogo novo. Uma pequena chama rompe a escuridão. O Círio Pascal é elevado e cantamos: “Luz de Cristo!”. A cruz já não é derrota — é trono. A pedra do túmulo se torna símbolo de passagem. E então se entoa o primeiro Aleluia após quarenta dias de silêncio.
“Ele não está aqui. Ressuscitou, como havia dito.” (Mt 28,6)
Fechei a Bíblia. Olhei de novo para a serra. O Cristo ali, de braços abertos, permanecia. Mas agora eu o via diferente. Não mais o Crucificado apenas. Era o Ressuscitado. Era o silêncio que virou canto, o sábado que virou celebração.
E entendi: a vida também tem seus sábados santos. Tem seus tempos em que tudo parece parado, frio, sem sentido. Mas é nesse tempo escondido que a luz começa a nascer. Quem espera com fé, vê a pedra rolar.
Porque todo silêncio que vem de Deus é prelúdio de Aleluia.