Foi numa noite qualquer, daquelas em que o mundo lá fora adormece devagar, que me vi ali, à beira do berço do meu filho, velando seu sono. Ele respirava com calma, os cílios pousados sobre a face ainda redonda, e havia uma paz tão funda naquele quarto que tudo em mim silenciou. Fiquei apenas... olhando. Como se aquilo fosse o bastante. Como se aquilo fosse tudo.
E foi nesse instante — simples e eterno — q ue uma velha frase me veio à mente:
“Quero dar ao meu filho tudo o que eu não tive.”
Sempre a repeti como um juramento. Como se pudesse reparar, nele, todas as ausências da minha infância. Como se fosse possível cobrir com amor o que me foi negado — por tempo, por circunstância, por destino. Mas ali, com o coração entregue e os olhos marejados de ternura, percebi: talvez essa promessa precise ser revista.
Porque a paternidade, mais do que me revelar o amor, tem me ensinado. Tem me remodelado por dentro. E o que aprendo, sobretudo, é que meu filho não precisa do que me faltou. Precisa do que é dele por direito. Precisa do que o faz crescer inteiro — com raízes profundas e asas leves. Ele precisa do meu tempo, do meu olhar, da minha escuta, da minha presença. Precisa de mim por inteiro, e não apenas das sobras das horas.
Não se trata de doar presentes. Trata-se de estar presente.
“Criar um filho é cultivar uma árvore: não basta regar com o que nos faltou; é preciso observar de que tipo de solo ela precisa, para onde se inclina sua copa, em que direção floresce seu afeto.”
Esse pensamento me atravessou como se já estivesse há tempos guardado em mim, esperando o momento de nascer. E nasceu ali, entre a penumbra do abajur e o som leve da respiração do meu menino.
Amar um filho é, talvez, o mais belo exercício de renúncia: abrir mão dos desejos projetados, das carências não curadas, e escutar — escutar de verdade — o que ele necessita. E essa escuta é mais que ouvir. É perceber o que não se diz, é decifrar os gestos miúdos, é sentir com o coração atento.
Há um risco real, em querer dar demais do que nos faltou: e esquecer o essencial. De perder a chance de dar o que realmente importa.
Khalil Gibran escreveu:
"Seus filhos não são seus filhos. São os filhos e filhas do anelo da Vida por si mesma. Eles vêm através de vós, mas não de vós, e embora vivam convosco, não vos pertencem."
E ali, olhando meu filho dormindo, essa verdade me pareceu mais nítida que nunca.
Outras promessas também mudam quando se é pai. A vontade de oferecer tudo o que me foi negado cede espaço para outra: oferecer o que houve de mais bonito. Porque, sim, eu também tive coisas preciosas. Tive o cheiro do café da avó, o barulho da chuva no telhado, histórias cochichadas na hora de dormir. Tive mãos que afagaram febres e silêncios que, mesmo sem palavras, diziam amor.
Tive mais do que bens. Tive memória.
E é isso que quero deixar ao meu filho: lembranças que possam morar nele para sempre. Que ele se lembre do meu cheiro ao chegar em casa, das músicas que cantei para embalar seus sonhos, da forma como o embalei mesmo depois que adormeceu. Que ele saiba, quando crescer, que seu pai esteve ali — inteiro. Não em todos os momentos, mas nos que realmente contam.
Porque o que marca a alma de uma criança não é o tamanho do presente, mas a largura do abraço. Não é o que brilha na vitrine, mas o que se vive no chão da sala. Não é a pressa dos dias, mas a pausa. Não é o excesso, mas o essencial.
Numa sociedade que nos empurra para correr, há algo quase revolucionário em simplesmente parar e observar o sono de um filho. Dar tempo. Ser tempo. Ser abrigo.
Jean-Jacques Rousseau disse: “O homem é bom por natureza. É a sociedade que o corrompe.” Talvez, então, o nosso papel — como pais que velam e cuidam — seja o de construir esse primeiro refúgio onde a bondade do mundo ainda possa ser vivida com calma. Onde uma criança, mesmo sem saber o nome de todos os medos, se sinta segura para enfrentá-los um dia.
E ali, parado ao lado do berço, enquanto ele dorme sereno e alheio a todas as minhas revoluções internas, eu entendo:
Não preciso dar a ele tudo o que me faltou.
Preciso dar o que em mim resistiu.
O que me sustentou.
O que me ensinou a amar.
Herança verdadeira não cabe em um cofre.
Cabe num olhar.
Num gesto.
Num tempo doado com verdade.
E é isso que quero oferecer:
O que ele precisa.
E, do meu tempo… tudo o que eu tive de mais bonito.
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