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Colunas
22/10/2025 - 16h32
O Céu de Minha Fé
Confira a coluna escrita por Emerson Miranda

A frase apareceu de repente, como quem não quer nada, escondida entre parágrafos distraídos de uma leitura qualquer:

"O mundo nunca sofrerá com a falta de maravilhas, mas apenas com a falta de capacidade de se maravilhar."

Parei. Repeti em voz baixa. Guardei na borda da alma. Era Chesterton, disseram. E era verdade.

 

Foi logo depois disso, no final daquela mesma tarde, que me vi ali, na Serra do Cruzeiro, subindo devagar, com o cansaço nos pés e o coração leve. Fui visitar o Cristo — nosso Cristo — como se visita um amigo. Era fim de dia, e as nuvens haviam descido, devagarinho, como se ajoelhadas em reverência sobre a cidade. O céu estava tão próximo que parecia conversar comigo.

 

Patrocínio respirava fundo. As serras ao redor, encobertas em névoa translúcida, pareciam suspensas entre o chão e o céu. E eu, ali parado, me dei conta de que fazia tempo que não me maravilhava. Não por falta de beleza — mas por ter me acostumado a enxergar com os olhos que apenas reconhecem, e não com os que se encantam. E maravilha não é coisa que se reconheça. É coisa que nos rouba as palavras.

 

Eu não estava apenas vendo o céu — eu o estava sentindo. Como quem sente o cheiro de café antes mesmo de acender o fogo. Como quem sente saudade de algo que ainda nem viveu. O céu me servia a memória em goles — e eu aceitei, quente, essa fé que não se explica com catecismos.

 

E nasceu assim a canção.

 

Não por plano ou por técnica. Ela apenas veio, escorrendo pelas palavras como se já existisse, apenas esperando por mim. Cada verso era um pedaço desse instante suspenso entre o mundo e o espanto. E, como toda canção sincera, nasceu também de um lugar: Patrocínio, essa terra de encantos disfarçados.

 

Há quem veja Patrocínio como ponto no mapa. Eu a vejo como ponto de interrogação no peito. Aqui, o tempo tem modos antigos. A tarde chega com cheiro de chão molhado, os ventos sabem onde se deitar, e o silêncio não é ausência — é presença que vigia. Foi desse tempo quieto, onde tudo canta mesmo quando cala, que tirei os primeiros versos.

 

“Céu bordado em fumaça de bruma.”

É assim que ele chega às vezes, com a bruma acariciando as serras, como véu sobre o rosto de uma noiva que se casa com o mundo. “Cheiro de chão quando a tarde esfria” não é poesia — é realidade literal para quem já andou pelas ruas de terra quando o sol decide repousar cedo. O chão de Patrocínio tem cheiro de saudade úmida. É uma cidade que respira pelo nariz da infância.

 

A canção fala da fé, mas não da fé que se grita em púlpitos. Fala da fé que se guarda em canecas, da que se aquece devagar como leite no fogão de lenha, da que pinga estrela por estrela no tempo morno dos dias comuns. É essa fé, talvez, que ainda me salva quando o mundo desaba ruidoso lá fora.

 

E tem mais: Patrocínio não fala — suspira.

Esse verso me doeu de bonito quando escrevi. Porque é isso. A cidade não é feita de grandes monumentos, mas de suspiros escondidos em manhãs de feira, em risos de menino chutando garrafinha plástica como se fosse bola, em varais que penduram a roupa e os dias. É terra que não cabe na mão, mas se instala nos olhos de quem aprendeu a ver.

 

Poderia ser qualquer lugar. Mas não é.

Porque só aqui eu vi meninos colhendo nuvens com os olhos. Só aqui eu ouvi a esperança dormindo em ninhos. E mesmo as dores mais antigas — aquelas que se guardam em abrolhos — aqui sabem florir, vez ou outra, quando esquecem dos espinhos. Essa cidade me ensinou que a saudade também pode ser jardim.

 

A ponte da música — “tudo canta, até o que se cala” — nasceu de um pensamento que me assombra com frequência: o de que as coisas mais verdadeiras raramente gritam. O amor, o medo, a gratidão, a fé — todos têm uma voz que às vezes escolhe o silêncio como forma mais honesta de dizer. E Patrocínio, ah… Patrocínio é mestra nesse idioma.

 

No refrão final, escrevi como se rezasse:

“Na caneca quente da imensidão.”

É onde mora minha fé. Não nas paredes frias de fórmulas prontas, mas nos instantes em que o mundo se serve de simplicidade para me alcançar. Uma manhã fria, um chão com cheiro de chuva, um céu que não se cansa de existir — e eu, maravilhado como se visse tudo pela primeira vez.

 

Chesterton estava certo.

O mundo não tem falta de maravilhas. Falta é a gente se dar ao luxo de parar — não só o corpo, mas o juízo. Falta é a gente se permitir o susto bonito do encantamento. E foi isso que aquele céu me deu, ali no alto da serra: me desensinou o hábito e me ensinou o espanto.

 

A canção “O Céu de Minha Fé” não é só um retrato do alto. É um espelho do dentro. Um lembrete de que ainda sou capaz de me maravilhar — e que Patrocínio, essa terra de céu bordado e chão com cheiro de eternidade, me devolve isso todas as vezes que olho pra cima sem pressa.

 

E talvez, só talvez, isso já seja oração suficiente.



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