Nós usamos cookies e outras tecnologias semelhantes para melhorar a sua experiência em nossos serviços, personalizar publicidade, recomendar conteúdo de seu interesse e otimizar o conteúdo do site. Ao utilizar nossos serviços, você concorda com tal monitoramento. Confira nossas Políticas de Privacidade e Termos de Uso, clique aqui.

O jornal que todo mundo lê
Publicidade
Colunas
08/10/2025 - 14h28
Aprendendo a Ouvir a Vida
Confira a coluna escrita por Emerson Miranda

Hoje parei por um instante.

Não um daqueles instantes que a gente chama de “pausa” só porque o corpo está parado. Falo de um verdadeiro suspiro no tempo — aquele que a gente vive inteiro, com os ouvidos, com os olhos, com o peito, com as pontas dos dedos.

Foi uma pausa breve, daquelas que a rotina permite a contragosto. Mas nela, abri diante de mim uma nova partitura, dessas cheias de linhas, claves, figuras — toda uma floresta de sinais esperando por leitura. E, como de costume, meu olhar correu sobre ela com pressa. Procurava compreender, decifrar, aprender.

Mas algo não acontecia.

As notas estavam ali, perfeitamente desenhadas. Os compassos alinhados, os símbolos todos em seu devido lugar. Eu lia. Sim, eu lia. Mas não ouvia.

A melodia escapava.

Era como se eu estivesse diante de um poema escrito numa língua que conheço — mas lido sem alma, sem pausa, sem carne. Meu olhar, rápido demais, não tocava o sentido: apenas os contornos.

Ali, naquele exato momento, compreendi que meu erro era o mesmo que tantas vezes cometo nos dias da vida. Eu lia as figuras. Não os padrões.

Como na partitura, eu vinha vivendo os dias como quem percorre um texto decorado, sem escutar a música por trás. Acorda. Trabalha. Fala. Responde. Dorme. Repete.

Tudo lido — nada ouvido.

Foi então que fechei os olhos.

E — como quem retira os sapatos para entrar em solo sagrado — decidi entrar naquela música com o coração descalço.

Deixei de buscar figuras.

Passei a buscar sentidos.

Comecei a perceber os acordes ocultos entre os compassos. Os silêncios necessários, as intenções escondidas, a respiração que antecede cada som. A música começou, enfim, a se mostrar.

E com ela, uma pergunta se insinuou por trás das pautas:

Como ando ouvindo a melodia dos meus dias?

Tive medo da resposta.

Porque há dias em que o ritmo é tão apressado que sequer nos damos conta do que estamos vivendo. Olhamos para os compromissos como quem olha para colcheias apressadas. Contamos as horas como quem lê fórmulas — não como quem escuta uma canção.

A vida, pensei, também tem seus padrões. Seus temas recorrentes. Suas frases que se repetem com variações. E só os percebe quem desacelera o olhar.

Quem ouve, antes de ler.

Quem sente, antes de entender.

Rubem Alves parafraseou que o essencial se percebe com o coração e não com os olhos. Que as coisas mais bonitas não se explicam — se escutam. Que o saber que não nasce do encantamento é estéril.

“A pressa é inimiga das borboletas,” ele escreveu uma vez.

E hoje, ao olhar para aquela partitura e perceber minha pressa vazia, vi o quanto essa frase também era sobre mim. Eu andava espantando as borboletas dos meus dias — aquelas que pousam quando a gente está quieto, presente, disponível para o instante.

Talvez seja isso que falta em nós: menos leitura e mais escuta.

Menos decifrar e mais sentir.

Porque os dias também têm ritmos. E se os vivermos apenas como obrigações, como tarefas, como figuras musicais que precisam ser “tocadas” na velocidade da pauta, perderemos a música que nos habita.

Desacelerei. Respirei fundo.

E ali, diante daquela partitura, toquei uma única frase — lentamente, com os olhos e os dedos. E ouvi. Finalmente ouvi. A melodia não estava nas notas. Estava no espaço entre elas. No silêncio. Na intenção. No modo como o som nascia.

E percebi: é assim também com os afetos, com os encontros, com os gestos pequenos que atravessam nosso cotidiano e que ignoramos por sermos leitores apressados do tempo.

Talvez a vida seja como essa partitura.

Talvez tudo o que ela espera de nós é que a escutemos com calma.

Não como quem corre para terminar, mas como quem saboreia.

Não como quem busca perfeição, mas como quem dança com o erro.

Não como quem precisa entender — mas como quem deseja sentir.

Talvez seja por isso que tantos de nós estamos exaustos. Não é o peso das tarefas — é o ritmo insustentável de uma música que esquecemos de interpretar com o coração.

_____________________


Hoje parei por um instante.

E nesse instante, ouvi.

E ouvindo, me ouvi.

Porque há melodias que só se revelam quando a gente abandona a partitura e passa a escutar o que está por trás da pauta — e dentro da alma.

E talvez, no fim das contas, a sabedoria não esteja em saber ler, nem tocar…

Mas em aprender a escutar a si mesmo como quem escuta uma canção querida pela primeira vez.

Com espanto.

Com ternura.

E com tempo.




Confira Também


Publicidade

no Facebook