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Geral
01/10/2025 - 13h48
Pardais às Seis e Pouco
Confira a coluna escrita por Emerson Miranda

Ainda não são seis e meia. A cidade boceja. O céu é uma tela entre o azul que quer nascer e os últimos tons de laranja dormidos na borda do horizonte. Saio para o trabalho enquanto a rua ainda digita suas primeiras frases do dia. Há silêncio, mas não há ausência de som. Há sons que nascem como preces — e não há reza mais sincera do que o chilreio dos pardais logo cedo.

No canteiro central da avenida, uma árvore sem nome me espera como quem sabe de mim. Fica a poucos passos da minha casa. É um velho abrigo, uma catedral de galhos torcidos e folhas resistentes, onde dezenas de pardais fazem festa todas as manhãs. São tantos, e tão vivos, que o barulho que fazem chega a ser de alegria exagerada. Mas é impossível não parar. Impossível não notar. E então me pergunto: se é impossível não perceber... por que não admirar?

Há uma urgência no canto dos pardais. Não é o mesmo canto melódico e encantador dos sabiás ou dos canarinhos que ganham concursos de canto e páginas de poesia. O pardal não compete. Ele não se exibe. Ele apenas canta como quem precisa comunicar algo ao mundo — talvez um lembrete, talvez um chamado.

Enquanto passo por eles, com a mochila nas costas e o corpo ainda tentando acordar por inteiro, tenho a impressão de que me olham. Não com olhos de pássaros, mas com olhos de quem sabe da vida mais do que nós. Estão ali, empoleirados em uma democracia de galhos, onde o canto de um embala o ninho do outro, e os filhotes chilreiam como se tudo dependesse disso — e talvez dependa mesmo.

Pardais não têm pompa. Não têm cores de revista. São discretos, mas não são tímidos. Preferem a companhia dos homens ao refúgio das matas. Habitam frestas, postes, calhas, beirais de telhado, letras de letreiros. Constroem suas casas com restos — penas perdidas, folhas secas, fiapos de mundo. São sobreviventes poéticos do caos urbano.

Vejo-os sempre ali, todos os dias, e mesmo assim demorei a realmente vê-los. Demorei a admirar. Talvez porque o mundo nos ensine a correr tanto que esquecemos de olhar o que não nos impressiona à primeira vista. E o pardal não impressiona. Ele insiste. É insistência em forma de asa. É presença.

Hoje, fico parado alguns segundos a mais, como quem ouve uma revelação sem palavras. O trânsito ainda tímido me permite esse luxo: a contemplação de uma árvore barulhenta. São tantos ninhos, tantos pequeninos pios pedindo comida, aconchego, atenção. Os pais voam e voltam num ciclo que se repete, mas que não cansa. Porque é da vida: dar, voltar, trazer. A rotina deles é bonita. Cansativa, talvez. Mas bonita. E tão parecida com a nossa.

Penso, enquanto caminho, em quantas coisas já não passam diante de nós como os pardais — pequenas, constantes, preciosas — mas não as vemos. A vida, às vezes, parece feita só dos grandes voos, das alturas. Mas há beleza também nos voos curtos, nos que acontecem rente ao chão. Nos que não impressionam plateias, mas sustentam ninhadas.

Há dias em que me sinto exatamente como um pardal: comum, invisível aos olhos alheios, tentando sobreviver com os galhos que me dão, com os restos do que sobra, mas ainda assim cantando — mesmo que desafinado, mesmo que sem motivo aparente. E nesses dias, perceber que há outros como eu, pousados em árvores da cidade, vivendo suas pequenas vidas com dignidade e alegria, me consola.

 

O que me encanta é que eles não precisam de muito. Um canto, um galho, um parceiro, um punhado de alimento. Nenhum deles parece infeliz. Nenhum deles parece ansiar por outra coisa que não seja o agora. Talvez por isso seu canto seja tão urgente — porque ele é todo presente. Não é saudade nem esperança. É canto de quem está.

E eu, que tanto me perco entre os ontens e os amanhãs, aprendo com eles que o tempo mais bonito é o instante que se canta. Mesmo que ninguém ouça. Mesmo que ninguém aplauda.

Quando me afasto da árvore, os sons continuam atrás de mim, como se quisessem me seguir, como se fossem fiapos de oração que grudaram na minha roupa. Eu levo os pardais comigo para o trabalho. Não nas mãos, mas nos olhos. No coração atento. Na certeza de que há delicadeza escondida em tudo o que é constante demais para ser notado. E que a beleza nem sempre é uma questão de brilho, mas de permanência.

Volto o olhar uma última vez antes de dobrar a esquina. A árvore continua lá, cheia de vida e de vozes. E penso: que sorte têm os que acordam todos os dias perto dos pardais — e ainda assim escolhem ouvi-los.

Talvez, no fundo, a liberdade seja mesmo um pássaro pequeno que não precisa de floresta para ser feliz. Que canta mesmo quando não é visto. Que ensina, mesmo sem querer.

E talvez a maior sabedoria esteja em aprender a ser como ele: viver entre os homens sem deixar de ser inteiro. Fazer ninho onde der. Amar sem alarde. E cantar — mesmo que o mundo esteja com pressa demais para parar e ouvir.



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