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Colunas
25/11/2025 - 10h17
O último a Dormir
Confira a coluna escrita por Emerson Miranda

Sou sempre o último a dormir em minha casa.
Não por insônia, nem por obrigação — mas por um tipo de escolha, uma fidelidade a um momento que se repete todas as noites: o instante em que o mundo, enfim, aquieta.

Quando todas as vozes cessam, os talheres repousam, os passos se recolhem, e até o último tilintar da rotina se dissolve no escuro... é nessa hora que eu me levanto. Saio devagar, com cuidado para não acordar ninguém, como quem caminha entre sonhos alheios. Passo pela porta e me sento diante do céu.

Mas não olho para o alto como quem pergunta se vem chuva.
Olho porque preciso.
Olho como quem confessa sem palavras.

Ali, naquela vastidão escura bordada de pontos de luz, há um lugar que me reconhece. Um lugar que me viu crescer. As estrelas, indiferentes às urgências dos homens, sempre estiveram lá, assistindo à minha transição de menino curioso para adulto contemplativo — sem jamais me cobrar pressa.

Meu primeiro olhar para o céu foi despretensioso, infantil. Eu tinha decorado um poema de rima simples, dito com graça num palco de escola:
"Lá no céu tem três estrelas, todas três encarrilhadas: uma minha, uma sua, outra da minha namorada."

Na época, o que me encantava era o som das palavras brincando de rimar.
Hoje entendo: aquele foi o meu primeiro pacto com o céu.

Desde então, nunca mais deixei de olhar.
Olhar demoradamente.
Olhar até que as estrelas deixem de ser só pontinhos acesos e revelem sua dança sutil de profundidade — umas mais próximas, outras quase invisíveis, distantes demais para o olhar apressado das cidades. E aí acontece algo difícil de nomear: a noite se desdobra. O céu ganha três dimensões. E eu desapareço, por um instante, dentro da imensidão.

Há quem diga que isso é apenas física, luzes viajando no tempo.
Mas para mim, é mais: é a revelação de um elo invisível.

A cada noite, nesse gesto aparentemente banal de olhar para cima, reencontro aquele menino que recitou um verso sem entender o que dizia, mas com os olhos acesos de espanto.
Reencontro também o homem que sou, cercado de compromissos, medos e esperas — e, ao mesmo tempo, ainda capaz de se maravilhar.
E reencontro aquele que um dia pretendo ser: mais leve, mais calado, mais sábio.
Tudo isso, num simples gesto de estar diante do céu.

É como se as estrelas fossem um espelho que só reflete o que há de mais essencial — mas apenas para quem aceita esperar.

E é por isso que gosto de ser o último a dormir.
Porque só quando tudo dorme, eu desperto por dentro.
Só quando o mundo cessa o barulho, o universo me fala — não com palavras, mas com uma forma de presença que não exige tradução.

Nesse momento, costumo ver estrelas cadentes.
Já perdi a conta de quantas vi. Algumas rápidas demais, outras lentas como suspiros. Cada uma delas, um convite a desejar. E confesso: tenho guardado uma coleção de pedidos não feitos.
Não por falta de fé, mas por excesso de respeito.

Talvez um dia eu os distribua como presentes — se as estrelas permitirem.
Mas no fundo, não é o pedido que me importa. É o fenômeno em si.
A ideia de que algo pode cruzar o céu e desaparecer, deixando um rastro de silêncio encantado no peito de quem viu.

Elas me lembram que existe beleza no que passa.
Que nem tudo precisa durar para ser verdadeiro.
Que às vezes, só o brilho basta.

O céu noturno, com sua constância e mistério, me ensina mais do que qualquer livro.
Me ensina, por exemplo, que as distâncias não são medidas apenas em espaço, mas em tempo, em lembrança, em afeto.
A estrela que vejo agora talvez já tenha morrido, mas sua luz continua chegando.
Assim também são certas pessoas, certos momentos, certos sentimentos.
Partem — mas continuam a iluminar de longe.

E há algo de profundamente humano nesse entendimento.
A percepção da nossa pequenez diante do cosmos não é tristeza — é liberdade.
Porque, ao saber-se pequeno, o coração se alivia.
Não precisa mais carregar o peso de dominar o mundo. Basta estar.
E estar, nesse caso, é olhar com reverência.

Por isso, mesmo quando o dia foi exausto, mesmo quando o cansaço me pede cama, algo em mim resiste.
Sento-me no escuro, nem sempre em busca de respostas, mas sempre em busca de presença.
Ali, entre a sombra e o clarão dos astros, não sou melhor nem pior.
Sou apenas alguém que ainda sabe olhar.
E talvez isso já baste.

Porque enquanto eu conseguir ver nas estrelas não apenas luz, mas sentido — então, saberei que não me perdi de mim.
E que, apesar de tudo, o menino de outrora ainda caminha comigo.
Ele que sabia, sem saber, que as rimas escondem mistérios.
Ele que apontava para o céu como quem dizia: “Olha, tem coisa lá!”

E tem mesmo.
Tem o tempo, tem a memória, tem o silêncio do mundo.
Tem a promessa de que, apesar da noite, há luz.
E que há beleza em quem espera o instante em que tudo dorme —
só para poder
olhar para cima e lembrar o que nunca se deve esquecer:

O espanto é um dom.
E a ternura, uma escolha.



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