Patrocínio já foi moldura de uma vida mais calma, agora se torna palco de um triste espetáculo: o das sirenes que cortam a madrugada e o cheiro do asfalto queimada, misturado ao sangue e à pressa. As avenidas, antes cúmplices dos passos vagarosos e das conversas nas esquinas, são hoje corredores de uma urgência sem rosto, que arrasta consigo vidas e sonhos, deixando um rastro de cicatrizes invisíveis.
O que tanto nos apressa? O relógio, cúmplice moderno de nossa inquietude, insiste em empurrar cada um de nós para longe do instante. Corremos não para chegar, mas para escapar. Escapar do silêncio, da introspecção, do medo de estarmos a sós com aquilo que somos quando as luzes do mundo se apagam e só restamos nós, com o vazio dos olhos mirando o teto.
É como se o tempo tivesse mudado sua dança. Não gira mais em compassos largos como nas festas de outrora, quando se dançava de rosto colado ao amanhã. Agora ele é maratonista, é velocista – nos obriga a viver como quem foge de uma fera que nem sequer sabemos nomear. É o que o poeta Rainer Maria Rilke descreveu ao dizer que “o futuro entra em nós muito antes de acontecer”, e, assim, nos inquieta, nos arrasta.
E o trânsito, reflexo cru dessa pressa, se tornou a encenação do descompasso interior de nossa gente. É no volante que a ansiedade toma forma, que as ausências de abraços e conversas se transformam em ultrapassagens insensatas, em freadas bruscas e motores que rugem como vozes desesperadas. Os carros, metáforas de nossas urgências, correm não apenas pelas ruas, mas também sobre os afetos e sobre a vida, esmagando aquilo que não soubemos desacelerar dentro de nós.
Nesses dias de Patrocínio, vejo pelas janelas da cidade um desfile de almas apressadas e rostos distraídos, desatentos à beleza do instante. Os motoristas seguem de olhos vidrados, corpos rígidos, e corações ausentes. A velocidade não está só nos ponteiros do velocímetro, mas na alma – ou na falta dela. Como disse Albert Camus, “o homem tem duas faces: não pode amar sem se amar.” E talvez, em meio a essa pressa, tenhamos esquecido de nos amar, de nos olhar, de nos permitir estar.
A morte no trânsito não é apenas física. Ela começa muito antes, nos espaços vazios das relações, nas conversas abandonadas, nos sorrisos negligenciados. Vivemos como quem não tem tempo para viver e, paradoxalmente, acabamos ceifando o pouco que nos resta. A cidade, então, se torna cenário de um luto recorrente, de velórios prematuros, de uma dor que se disfarça em estatísticas frias nos jornais.
Mas há uma saída – e ela não está nas placas de trânsito ou nos semáforos, embora também estejam lá. A saída é íntima, é um retorno ao essencial. Precisamos resgatar a cadência natural da vida, aquela que permite contemplar as manhãs ainda úmidas de sereno e ouvir as vozes dos que nos amam antes de partir de casa.
É preciso desobedecer ao comando da pressa. Sentar-se à mesa com tempo para o café. Caminhar até o carro como quem faz uma prece, com olhos brandos e respiração que abraça o ar. A prudência, afinal, não é uma regra fria, mas um ato de amor. Quem dirige devagar escolhe permanecer. Quem respeita o outro na via, escolhe amar o outro no cotidiano.
Nietzsche escreveu: “Não é a intensidade dos afetos elevados que faz as pessoas infelizes, mas sua duração.” Talvez estejamos intensos demais e presentes de menos. O cuidado no trânsito, como na vida, é um convite a desacelerar a alma, a suavizar a voz, a reaprender a ser.
Patrocínio não precisa de mais lamentos. Precisa de um renascimento silencioso nos gestos cotidianos. Precisamos devolver à cidade o ritmo do andarilho e do menino que joga bola na rua. Que as ruas voltem a ser passarelas de encontros e não corredores de fuga.
Por isso, quando pegarmos a chave do carro, que também destravemos o coração, e ao invés de correr, que a gente siga em compasso com a vida – essa que pede um pouco mais de leveza e um pouco menos de urgência.
Talvez, no fundo, dirigir seja uma metáfora para o modo como conduzimos nossa própria existência: com gentileza ou brutalidade, com presença ou desatenção. E, se soubermos desacelerar nas curvas do cotidiano, quem sabe o trânsito volte a ser só mais um caminho e deixe de ser a trilha do lamento.
Que Patrocínio, com suas ruas de poeira e história, aprenda a reaprender o tempo. Porque, no fim, o que nos falta não é velocidade – é poesia.
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