Quando deparamos com algo muito bom, não há como não compartilhar com
você, que lê a nossa coluna, já a algum tempo. Esse texto de Míriam Morata, utilizando
fragmentos das composições, diz tudo o que nós também gostaríamos de dizer
sobre Milton Nascimento e seus companheiros de situação (conhecemos e
convivemos com tantos!). Vejam se não tenho razão:
“Eu tinha vinte e poucos anos
e ele cantou pra mim, com essa voz de anjo militante e eu descobri que também
queria tudo isso... “Quero a utopia,
quero tudo e mais/ Quero a alegria muita gente feliz/ Quero que a justiça reine
em meu país/ Quero a liberdade, quero o vinho e o pão/ Quero ser amizade, quero
amor, prazer/ Quero nossa cidade sempre ensolarada/ Os meninos e o povo no poder,
eu quero ver...”
E ele continuou cantando e me revelando a força da Arte e do Querer. Eu
tinha sonhos imensos, queria engolir a Vida em grandes porções; nunca gostei de
saborear em pequenas doses, e ele foi cantando pra mim, enquanto eu compreendia
esse jogo estranho de existir sem manual, sem bussola, “sem uma câmera na mão”,
mas com uma ideia na cabeça e a trilha sonora perfeita... para minha busca de
sentido, ou minha caçada... “Por tanto
amor, por tanta emoção/ A vida me fez assim/ Doce ou atroz, manso ou feroz/ Eu,
caçador de mim”
Aí hoje eu leio que o Bituca foi diagnosticado com Corpus de Lewy, a
mesma doença do meu pai. E de repente percebo que os meus amigos estão velhos,
os meus heróis e ídolos estão morrendo, ou adoecendo... e eu também. E de
repente eu também descubro, que esse é só mais um desafio do jogo da vida,
significa que passei para o próximo (e último) nível – aprenda com o passado,
viva o agora e continue apostando nos sonhos e paixão. Assim como ele, existem
milhões de velhos demenciados, milhões de cuidadores assustados, esgotados e
doentes, uma multidão invisível que sustenta com seu trabalho gratuito e
exaustivo, a dignidade e a vida de quem ama. Quem sabe a doença do Bituca não
será mais um grito de resistência e denúncia, mesmo que não seja gritando com
essa voz de anjo, tomara que você seja a voz de quem envelhece e adoece
escondido em algum canto da casa.
“Vou seguindo pela vida/ Me
esquecendo de você...” Você é gigante, vai esquecer isso,
mas nós não esqueceremos!
“Agora não pergunto mais pra onde
vai a estrada/ Agora não espero mais aquela madrugada...” A estrada
continua, e nem precisa esperar aquela madrugada, porque ela virá, a estrada
estará sempre ali à espera do caminhante e a gente aprende que nada disso
depende de nós, tudo isso só existe para que realizemos plenamente nosso
propósito, para que a vida tenha significado, mesmo que nunca saibamos qual é
esse propósito, ou inventemos significados, para que o tédio e a solidão não
esmaguem nossa paixão e fé.
Além disso, uma certeza eu tenho... "Há um menino, há um moleque/ Morando sempre no meu coração/ Toda vez
que o adulto balança/ Ele vem pra me dar a mão" Esse ninguém tira de
você.
Ao filho que vai cuidar, eu tenho um conselho... “Nada a temer/ Senão o correr da luta/ Nada a fazer/ Senão esquecer o
medo/ Abrir o peito à força/ Numa procura” Você terá apoio, amigos,
respeito de uma multidão, condições de oferecer o melhor tratamento... mas
cuidar de alguém amado, que vai saindo da nossa vida aos poucos, ainda que o
corpo permaneça conosco é a experiência mais assustadora, solitária e visceral
que você vai experimentar.
É um mergulho na fragilidade, impermanência e impotência humanas. Isso
quebra todas as nossas certezas e a arrogante sensação de que temos algum
controle sobre a Vida. Você vai bater o pé no fundo do poço, sozinho... e
quando voltar, será um ser humano muito melhor e mais preparado para realizar o
sacro oficio de existir.
”E assim chegar e partir/ São só dois lados da mesma viagem/ O trem que chega é o mesmo trem da partida/ A hora do encontro é também despedida...”
Obrigada Milton por continuar me inspirando. “Mas é preciso ter força, é preciso ter raça/ É preciso ter gana sempre.”